the show

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Quando eu tinha uns 16 anos, eu ganhei do meu pai o disco Hard Rain, gravado ao vivo num show do Bob Dylan. Eu ouvi aquele disco, como os outros tantos que eu tinha dele, até não poder mais. Eu tenho vários discos favoritos do Dylan, cada um por um motivo específico. Hard Rain é um dos mais querido porque nele eu ouvia a platéia vibrar com ele e me transportava de olhos fechados para o show, sonhando que um dia eu estaria lá também, de verdade. Esse sonho já se realizou duas vezes. Em 1999, na tour Time out of Mind e ontem, num show perfeito e precioso, num teatro lindo, cheio de história.
Tempos de guerra, ouvindo Dylan cantar Masters of Wars. Fiquei até na dúvida se não tinha embarcado numa viagem no tempo. Mas o cabelo desgrenhado grisalho e a cara do senhor de sessenta anos me certificaram que estou mesmo no século vinte e um. Ele, o mestre trovador, é que nunca sai de moda, nunca perde a força de sua música e sua poesia.
Chegamos no Memorial Auditorium em Downtown, Sacramento às 7pm e as portas do teatro tinham acabado de abrir. A fila estava quilométrica. Eu fui correndo pegar nossos tickets no will call e tive que caminhar três quarteirões e atravessar a rua duas vezes para chegar no final da fila. Gente de todas as idades andava pra frente e eu andava pra trás, e olhava pra cara das pessoas, todas elas estampando um sorrisão no rosto e uma atitude de excitação. Eu também estava assim. O rádio já tinha anunciado que ‘sorte de quem tinha um ingresso, porque esse seria um grande show’.
Na porta do teatro guardas faziam revistas em todas as pessoas entrando, como em estádio de futebol, mas isso não parecia estar incomodando ninguém. Lá dentro nós poderíamos sentar onde quiséssemos. Podíamos ficar de pé na frente do palco também. Resolvemos sentar no primeiro balcão, ao lado do palco. Estávamos tão perto de onde Dylan iria estar…. Sorriamos uns pros outros. Nunca vi tanta gente tão feliz reunida!
Às 7:30pm em ponto uma música dramática anunciou a entrada da banda no palco. Apagaram-se as luzes e já pudemos ver a figura pequena e grisalha entrando junto com a banda, sem a menor cerimônia, sem ser introduzido, sem pedir aplausos, sem absolutamente nada, porque isso tudo não combina com a sua personalidade blasé. Pequeno, magro e com aquele cabelo desgrenhado marca registrada, botas de cowboy pontudas de duas cores, um terno cinza com fios negros nas laterais das pernas e um desenho rococó nas costas do paletó comprido. A banda toda vestia terninhos de cowboy, como Dylan e era a mesma do show de 99, quando ele dividiu o palco do Arco Arena com o Paul Simon [que perda de tempo, ficar ouvindo aquele cara!]. Guitarras acústicas, guitarras elétricas [que eram trocadas a cada dois números], baixo, bateria, um bandolim, e um violoncelo – além da tradicional gaita, que foi soprada por Dylan em duas músicas.
O show começou com as tradicionais Wait For The Light To Shine e Song to Woody. A banda que acompanha Bob Dylan é jovem e cheia de energia. Está com ele na atitude blasé também. Não fazem peripécias no palco, mal saem do lugar. Tocam e cantam formando um conjunto equilibrado. O show foi perfeito. Dylan misturou músicas do seu novo disco Love and Theft com clássicos que todo mundo cantou junto. Ele tocou Things Have Changed, a música que lhe deu um Oscar, e Love Sick, de Time out of Mind. Das clássicas, com mudanças na maneira de interpreta-las como Dylan sempre faz, ouvimos I Want You, Masters of War, Boots of Spanish Leather, Don’t Think Twice, It’s All Right [ a simanca-desgruda-sitoca- baby, que Dylan fez pra Joan Baez], Highway 61 [que fez o teatro vibrar] e Leopard-Skin Pill-Box. No encore, que incluiu cinco músicas, Dylan lascou Like a Rolling Stone [com as luzes na platéia] e, of couse, Blowin’in the Wind, que foi cantada como um hino. Os números de Love and Theft estavam deliciosos, como o disco, que é realmente uma preciosidade. Um cara como ele, que já fez o que ele fez, passou por tantas décadas, passando todo tipo de mensagens, chega aos sessenta anos beirando a perfeição [eu nunca duvidei que ele já era perfeito, desde quando tinha aquela cara bochechuda e atitude temperamental].
Dylan parecia estar de bom-humor e presenteou a platéia com inúmeros sorrisos cheios de dentes. Bom, eu acho que os sorrisos eram para nós. Mas podiam ser só sorrisos de auto-satisfação e prazer. Dylan toca como se ali não estivesse viva alma. Toca suas guitarras meio de lado, mexe as pernas, dobrando os joelhos e pisando na bitoca de cigarro imaginária no chão. É uma dança. Dylan dança, sorri e no final do encore se curva e chega até a beira do palco, faz umas caras e mostra os dentes, como que dizendo obrigado. Ele é adorado, mesmo sendo essa figura esquisita. Eu prefiro que ele seja assim!
Saímos do teatro com cara de bestas. No rádio, um especial sobre Bob Dylan. Ouvindo e falando sobre ele, em tempos de guerra, com o refrão ecoando na nossa cabeça, que dizia “Come mothers and fathers throughout the land and don’t criticize what you can’t understand your sons and your daughters are beyond your command your old road is rapidly agin’. please get out of the new one if you can’t lend your hand for the times they are a-changin’.”

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