No inverno de 1994, minha irmã foi nos visitar em Saskatoon, Saskatchewan, Canadá. Foi uma delícia para nós - a parte da família que estava isolada lá nas planícies canadenses. Não sei se foi tão delícia pra ela, que escolheu a pior época do ano para um passeio por aquelas bandas. Mas mesmo assim nos divertimos com o que havia pra se divertir por lá durante o inverno: nadar nas piscinas internas da cidade, ir à biblioteca, patinar no gelo, visitar os amigos, ir ao teatro e ao cinema, sair pra comer, pra beber, pra ver shows e dançar. Até que a vida era bem agitada, mas fizemos tudo isso na cidade, não viajamos.
Então num belo dia, o Uriel ficou indignado - "Como? não levamos a Le pra viajar ainda? mas ela tem que viajar, conhecer outros lugares, ver outras paisagens!". Mas viajar pra onde, se tudo lá era tri-longe e não tínhamos tempo, nem dinheiro para planejar uma viagem decente, pras Rocky Mountains, pro extremo oeste [Vancouver] ou pro extremo leste [Montreal ou Toronto]?
"Vamos para La Ronge!" foi a idéia brilhante do Urso, achando que estava abafando e fazendo um super agrado para a cunhada.
La Ronge é uma reserva indígena, mais para o norte de onde estávamos. Deixa eu explicar - mais norte do que onde estávamos, era exatamente a fronteira entre o mundo semi-normal e o desconhecido inabitável. Mas não conseguimos argumentar com o Urso e como minha irmã concordou, nos aboletamos no carro com o imprescíndivel kit de inverno [cobertores, chocolates, velas, isqueiros] e fomos para La Ronge.
Passamos por Prince Albert, uma cidadezinha a uma hora e meia de Saskatoon, ouvindo Bob Dylan no tape do carro, comendo snacks e conversando alegremente. Ainda não tínhamos saído da normalidade. De Prince Albert até La Ronge foram três horas de estrada deserta, ladeada de pinheiros e tudo mais coberto de neve. Nosso entusiasmo de desbravadores começou a arrefecer. Eu, que me transformo num monstro em viagens, já fui ficando calada e de mau humor.
Chegamos em La Ronge [que agora já chamávamos de Lá Longe] mortos de fome. Deixamos as malas no hotelzinho e fomos tentar achar um restaurante na rua principal da cidade, que parecia ser a única e era onde ficava tudo, o hotel, o posto de gasolina, o restaurante. Quando chegamos já estava escuro. E estava tremendamente frio.... Não vou lembrar quão frio, mas foi o suficiente pra assustar a minha irmã, que nunca imaginou que pudesse ter um frio mais frio do que aquele que ela enfrentou em Saskatoon.
Alguém nos disse que havia um restaurante do outro lado da rua. Ficamos animados. Mas atravessar a rua em La Ronge foi mais difícil que andar trinta quarteirões em San Francisco com vontade de fazer xixi. Parecía que estávamos atravessando um verdadeiro deserto de gelo..... e eram apenas alguns metros. E o restaurante estava fechado!! Voltamos, nos agarrando um nos outros, xingando, chorando, isso não é justo, que absurdo, minha retina está congelando, quem inventou essa merda de viagem imbecil?
Usamos o telefone do hotel e descobrimos que um Kentuck Fried Chicken estava aberto na esquina da mesma rua. Fomos novamente, heróica e bravamente, caminhando até lá. Devoramos uns pedaços de frango frito morno e batatas fritas murchas num restaurante cheio de índios. Eles chegavam dirigindo ski-doos, vestidos em roupas de astronautas, que tiravam no meio do corredor, transformando-se novamente em seres humanos normais, com suas calças jeans, botas de cowboy e camisas de flanela xadrez. Nós, os quatro brasileiros comendo o menu requentado do almoço, éramos verdadeiros ETs ali.... Nunca me senti tão estrangeira, tão peixe fora d'água.
Voltamos pro Hotel, onde dormimos como pedras. No dia seguinte, eu e a minha irmã tivemos um desentendimento no breakfast. Olhando o menu do restaurante, com ovos, bacon e um monte de ítens que ela nem conhecia e nem queria conhecer, minha irmã reclamou e disse que só queria um café normal, será que era tão díficil arrumar um simples copo de leite com Nescau pra beber no café da manhã naquele país? Estávamos numa reserva indígena, no norte do nada, e ela queria um copo de leite com Nescau! Saímos do restaurante de cara virada, ficamos emburradas e choramos dentro do carro, enquanto o Gabriel dormia no banco de tras e o Uriel dirigia pra lá e pra cá, num passeio bucólico pela linda cidade de La Ronge.
"Olha que paisagem linda!"
[tudo branco, cheio de neve, um índio cruzando o lago congelado num ski-doo]
"Grmpfg"
Resolvemos voltar pra Saskatoon mais cedo, quatro horas numa viagem em total silêncio, secretamente felizes por estarmos voltando à civilização. Só podia ser coisa de Urso, inventar um passeio de índio desses.......
Fer Guimaraes Rosa - January 21, 2004 06:19 PMFernanda,
Muito bacana a sua história; mas, eu que estou pensando em fazer um curso em Saskatoon, agora estou até com medo do frio; portanto, não pretendo muito ir no inverno; vou ver.
Caso você tenha umas dicas legal, me escreva..valeu!
Abraços...
Luciana
Ei, garota,
A Angélica tinha razão...A história é bárbara...Você me deixou com um sorriso no rosto...Obrigada, eu tava precisando mesmo. Beijos de uma desconhecida.
Fernanda, Ia mandar uma mensagem pra uma amiga minha que adora tulipas, procurei google, achei teu blog. Comecei a ler e, em alguns intantes, minha mente voltou pro Canadá, lugar que conheci em 99 e ainda pretendo voltar. Que delícai de texto. Desculpe, nem te conheço e já to escrevendo no teu blog. Adorei, até.
Fer
Uma delícia ler suas histórias!
Deve estar mais do que na hora dee compilar tudo isto para um livro.
Bom você citar que vira "um bicho". Também eu; agora consciente tentarei diferente: intervalos menores para alimentação adequada, não esperar "ficar um lixo" para descansar...
Fer, que história é essa? Hahahahahahah Sensacional!
Tá vendo como valeu a pena passar por tudo isso? É uma história pra contar pros netos. :)
Fer, que história, hein? ;)
Mas essas aventuras valem muito a pena, mesmo quando dão errado! É muito legal se lembrar do que aconteceu no aconchego e conforto de casa... :)
Um beijão, saudades (logo envio um e-mail, estou dando um tempo da net, férias, férias!).
Fezoca!...
Demais! Fantástico! Vou lendo e parece que vai passando um filminho na minha cabeça, imaginando tudo o que aconteceu.
Sei que prá nós, de fora, (e até prá vocês, atualmente) é engraçado, mas que nos momentos em que aconteceram, não foi nada divertido. Já fiz alguns programas de índio com a família, mas não onde o urso hiberna. Mas eu não sou e nunca fui de viajar. Sou muito urbano (é o que mais ouço a Ciça me falar)! Detesto sair de São Paulo. Prefiro conhecer as coisas de longe. Talvez um dia mude, sei lá.
Pelo menos tinha um KFC, senão ia ser barra, né? Puxa vida, Nescau em plena terra indígena. Mas nessas horas é o que mais queremos, algo que nos acalme, que nos dê um certo prazer, um pouco de tranquilidade.
Beijos,
Fer..
Uma cóincidência legal. Recebi a visita no Sinaleiro da Rafaela Lombardino e no comment ela dizia morar na Califórnia... Visitei o blog dela e citei seu nome perguntando se ela a conhecia. Depois de comentar continuei no blog e tinha a seguinte frase no último post da pag.
"comecei a ouvir minhas mp3 e a fuçar meus blogs favoritos. Fui até o Cinefilia, da Fernanda Guimarães Rosa, e comecei a suspeitar que ela também morasse nos EUA porque os filmes que ela comenta são os mesmos que estão passando nos canais daqui."
Aqui o endereço do blog:
http://cadernodourado.blog-city.com/
Beijo e baitabraço.
ferrrrrrrrrrrrrrrrrr,
gargalhei! amei sua historia.
(tah vendo como é bom viajar? você ganha um montão de coisas para contar...)
beijo,
Fer,
Adorei a sua estoria. Isso que e' um programa de indio! hehe
Fe, agora fiquei rindo aqui porque os meninos assistem a um desenho onde tem uma personagem chamada Uriel, que eu só chamo de Muriel. Eles corrigem e eu digo que é porque não conheço o nome Uriel. Nem lembro que esse é o nome do Ursão! E aliás, que nome é esse tão diferente? Tem a ver com anjos?
beijoca
Frio é fodinha mesmo... mas o negócio é relaxar e aproveitar !!! Pelo menos vcs pediram pra tirar fotos com os locais ? Não, pq uma história dessas serve pra ser contada, e pra deixar a história mais interessante prosa ouvintes, fotos são IMPRESCINDÍVEIS !!!
beijinhos !!!
Imagino esta viagem, esta de ficar convivendo 24horas com as mesmas pessoas por varios dias sempre da rolo. Este post me fez lembrar as viagens interminaveis que fazia em familia no brasil :)