a vizinhança
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Woodland, Califórnia
É inverno no mundo todo. Estou medindo a intensidade do frio no inverno deste ano pela quantidade de vezes que estou tendo que raspar gelo do vidro do meu carro pela manhã. [#plenty] Quando alguém se mete a me dar aulas sobre o frio porque sou brasileira, só tenho uma resposta—morei cinco anos em Saskatchewan. [#sorry] Expliquem-me como pode estar zero graus lá fora e eu estar suando no suvaco aqui dentro? Sou a pessoa que escreve em garranchos garrafais uma frase completamente sem sentido no cartão de felicitações pela aposentadoria da gerente. Os tours pelo campus, com os guias andando de costas, recomeçaram. Estou [quase] sempre com fome. A pessoa personaliza a placa do carro pra dizer pro mundo —MYPUMBA. O grande problema pra mim não é acordar. O grande problema é me recompor da viagem interplanetária que eu faço todas as noites. O nome do pastor da Igreja dos Discípulos de Cristo em Woodland é Larry Love. Sem brincadeira. Admiro imensamente essas pessoas que pedalam a bicicleta enquanto bebem café na caneca. Parece que tudo já foi dito e já foi feito, agora é só repeteco, repeteco.
Sobrevivi à mais dois longos episódios de jet lag, um pra frente e outro pra trás. Saí no outono e voltei no inverno. E subestimei um pouco o frio, depois de achar que nunca mais pararia de suar em bicas. Este ano voltamos ao frio molhado de sempre, depois de um inverno atipico—sem chuva e neve, do ano passado. Um fato bem notável por aqui é que pode estar o frio que for, tem sempre uma criatura vestida só de camiseta [ou chinelo].
Um pouco mais de uma semana para o Natal e a casa já tem luzinhas e vamos até a montanha buscar uma árvore. Óbviamente não estou pensando muito em festa, mas quando chegar quase lá eu vou me organizar, como é o meu estilo.
Em qualquer continente ou hemisfério, o Natal é sem dúvida a celebração com maior abundância de elementos decorativos cafonas ou simplesmente horripilantes. Da neve falsa aos papai noeis infláveis, quase tudo me horroriza. Mas gosto dos nutcrackers e do brilho das bolinhas de vidro.
Minha vida online—quem tá jogando? que show é esse? quem é você? o mundo acaba quando?
♪ ♫ would you like to take a walk? do you think it’s gonna rain? oh, not in California ♪
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Coisa linda de ver no meu caminho pro trabalho, a névoa densa e bem baixa cobrindo os campos agrícolas. No jornal da minha cidade saiu uma reportagem detalhada sobre os heróicos bombeiros que resgataram da árvore um cockatoo de 24 anos chamado Yuki. Essa vida agitada da roça. E enquanto isso na cidade grande um sujeito mata de maneira extremamente violenta a cunhada e os dois sobrinhos.
Tirei minha máquina de costura do armário e depois de chutar latas para conseguir trocar a linha e colocar o fio na agulha fiz uma coisa incrível—costurei uma saia que eu não usava com uma camiseta que eu não usava e fiz um vestido que nunca vou usar. Yay! Como eu quase não tenho tempo livre pra fazer coisas que gosto, gasto o pouco que arranjo fazendo coisas inúteis. O meu grande problema no momento são as roupas que apertam. Acho mesmo que esse é o drama da minha vida. No dia em que eu conseguir vestir uma meia calça sem me sentir completamente desesperada, serei uma mulher feliz e realizada.
Já posso com certeza escrever um livro de histórias toscas e bizarras do meu relacionamento com a Ogra, a mestra suprema em me mandar pelo caminho errado, fazer coisa errada, escrever e-mail equivocado, me fazer perder tempo e passar carão.
O frio chegou e com ele um cheiro intenso de madeira queimada no ar. Lareiras acesas na vizinhança. A nossa também já estreou. Casinha com fumacinha na chaminé. Tudo por aqui é temático e sazonal, especialmente os convercês informais. O iniciador de conversa de duas semanas atrás era—are you ready for halloween? O iniciador de conversa neste momento é—are you ready for thanksgiving?
Que pessoa normal que vive neste século e ainda nao fez oitenta anos acorda com o Bing Crosby cantanto na jukebox mental? Profissão: faxineira de html. Mulherogra me manda fazer furadas. Daí tenho que ficar me explicando por e-mail pras editoras de conteúdo e nem posso dizer—foi a burra que mandou eu fazer isso! Snapshots da minha vida na roça: percebi há alguns dias um opossum enorme morto bem na entrada da rampa de saida da estrada quando vou entrar no campus. Ele não está com tripas expostas nem nada. Está enroladinho com a cabeça apoiada nas patinhas, parece que está dormindo, superjudiação! Você ingenuamente pensava que aquele blog tava fazendo algo criativo, até ver a mesma coisa sendo feita [há mais tempo] num blog estrangeiro. Vai chover amanhã e depois de amanhã e depois de amanhã. Primeira chuva em meses. Já até esqueci quando foi a última vez que vi cair chuva por aqui—fevereiro? março? A Califórnia é realmente o maior produtor mundial de uva passa. [entre frutas e humanos]. Felizmente não sou a única ridícula da zumba, pois outro dia tinha uma indiana se sacolejando toda na minha frente que peloamorededeus. Sou maria-não-vai-com-as-outras. Clica no X [cancela].
Acordar quando ainda está escuro é um dos grandes inconvenientes da vida proletária.
A secretaria novinha almoçando uma maçā. E eu, em plena meia idade, devorando duas fatias de pizza de aliche/mussarella, salada de abobrinha com alface e queijo, figos frescos e pêssegos grelhados.
Lady Astor––If you were my husband, I’d poison your tea. Churchill––Madam, if you were my wife, I’d drink it!
Vi por acaso duas fotos do meu filho todo garboso com flor na lapela como groomsman no casamento dos amigos no Yosemite. Sou a mãe espiando a vida do filho pelo buraco da fechadura, pela fresta na janela ou por cima do muro.
Vi umas fotos sem saber de onde era, mas tava com cara de Califórnia. E era. Los Angeles. Los Angeles tem uma vibe inesquecível, embora eu não sinta amor nenhum por aquela cidade.
Pode chamar Los Angeles de LA, Sacramento de Sac, mas nunca, nunca, nunca chame San Francisco de Frisco.
Tá explicado porque eu não acompanhei a campanha na eleição presidencial de 2008. Só fui lá e votei no meu candidato. Desta vez estou acompanhando e estou ficando muito estressada!
Jornalista da NPR em Sac que faz entrevistas culturais não sabia quem foi Enrico Caruso. Colega americana de mais de sessenta anos que não sabia quem era Fellini, não conhecia o Gary Cooper, nem a Flannery O’ Connor. Simplesmente imperdoável. Em que planeta vivem essas pessoas?
Meu marido viu o histórico voo do space shuttle Endeavour pela Califórnia no campus da NASA na Bay Area. Eu aqui na roça não vi absolutamente nada.
Quem é Emmy?
Reconheci o mocinho que inspecionou minha casa em Davis antes da mudança. Aquele que me disse—vá para Woodland com a mente aberta que você vai adorar e vai encontrar lá a sua tranquilidade! Foi exatamente o que fiz e foi o que aconteceu. Toquei levemente o ombro dele para dizer que lembrava dele e mencionei o que ele tinha me falado na época. Conversamos por uns minutos. Ele também mudou, de San Diego para Woodland, o que deve ter exigido uma mente muito mais aberta que pra sair de Davis.
Essa história é parecida com a da mulher que comprou minha mesa de jantar quando desfiz minha casa em Piracicaba para mudar para o Canadá. Ela tinha tido uma experiência similar—morou num outro país acompanhando o marido que fazia um doutorado; e me aconselhou a aproveitar cada minuto, sem ficar chorando de saudades do Brasil pois aquela era uma oportunidade única. E foi exatamente o que eu fiz.
Sei que essas coisas são um baita clichê, frases que as pessoas falam umas para as outras e que podem não significar grande coisa ou absolutamente nada se você escolher não ouvir.