short stories

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Era uma vez um rapaz inteligente, atlético, charmoso e esforçado, que tinha sardas e cabelo ruivo. Ele nadava, jogava futebol, basquete e vôlei, tirava notas altas em matemática e nunca repetiu de ano. Consertava o ferro elétrico da mãe, era gentil com as garotas e tinha um apelido bonitinho dado a ele pela turma. Fez vestibular e foi estudar engenharia agrícola, usava botina, calça jeans com camiseta e mantinha o cabelo comprido. Era exímio no jogo do truco, sabia fazer vinho quente e dançar forró.
Num belo dia o rapaz ruivo foi a uma festa e conheceu a menina bem magrela de cabelo bem curto e vestido bem longo. Ela não bebeu cerveja, mas falou pelos cotovelos. Ela era alta e tinha um jeitão desengonçado. O rapaz ficou a festa toda conversando com ela, que disse que fazia terapia, comia macrô e estudava psicologia. Ela não fazia parte da turma e contou um monte de histórias engraçadas e interessantes, que ele escutou feliz. Daquele dia em diante tudo mudou. Ele agora tinha uma namorada.
Os namorados namoraram rapidamente, casaram-se, tiveram um filhinho quase ruivinho que adorava desenhar e viveram felizes. Até agora para sempre.

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numa piscada

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Repensando agora, parece que tudo aconteceu muito rápido, como num filme acelerado. Num minuto se está num estresse, arrumando mala, pensando no enclausuramento do avião e na expectativa de deixar o certo pelo desconhecido. Noutro minuto se está num outro continente, surpresa com as novidades e diferenças, sem conseguir dormir, caminhando cansada, comendo cansada, bebendo cansada e muito alegre. Muito papo, muita foto, muitos abraços, lugares, comidas, felicidade. Laranjeiras e limoeiros carregados, papoulas amarelas e vermelhas, oliveiras, lavandas, videiras, hortinhas nos quintais das casas brancas pelas estradinhas, estreitas ruas medievais, castelos, muralhas, cachorros e gatos, ovelhas e vacas, café com leite e pão com manteiga, queijo e presunto, varandas, azulejos, vasos de flores, roupas secando nas janelas, estádios de futebol, vinho verde, vinho branco, vinho tinto. De repente pisca-se e tudo acabou. De volta à rotina, lancheira com banana, iogurte e biscoito de arroz, bicicleta, how was your trip, lista de afazeres, centenas de e-mails não lidos, sol, flores, cerejas, tomates, estudantes, cheiro de jasmim. Welcome home—ouvi dos oficiais da alfândega no aeroporto. Yes, indeed, welcome home!

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no final, um ponto

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Alguém outro dia me perguntou como se escreve um final para uma história. Colocando um ponto final, respondi. Somente isso.

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quarenta anos em quatrocentas páginas

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Queria poder escrever mais sobre a minha vida aqui pra poder ter informação consignada, como arquivo da minha história e dos detalhes que vou certamente esquecer. Pelo menos os últimos onze anos das nossas vidas estão razoavelmente registrados em correspondência por e-mail e fotos digitais guardadas numa caixinha preta e cinza chamada external drive. É bastante informação, embora desorganizada e sem uma ordem cronológica.
Julia Child já tinha 90 anos quando escreveu um livro de memórias, com a ajuda de seu sobrinho-neto. Nele ela detalhou com tanta minúcia coisas que tinha vivenciado aos 40 anos, que eu concluí que ela e o marido Paul tomavam nota de tudo, escreviam diários, cartas, tiravam muitas fotos e guardaram com cuidado todas essas relíquias por muitos anos. Com certeza todo esse registro facilitou na hora de colocar uma vida resumida num livro.
Apesar de não ser nenhuma Julia, nem estar planejando escrever nenhum livro, tenho pensado nesse lance do registro, especialmente agora, nessa etapa de vida quando tudo tem estado particularmente borbulhante. Meu desejo de registrar minha vida é consistente. Estou exatamente na idade em que as coisas começaram a acontecer para a Julia Child. Muita gente diz que ela começou tudo muito tarde, mas se começar tarde implica ter uma vida tão magnífica como a dela, estou pronta para a inauguração da minha!

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vou procurar a minha turma

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No passinho do elefantinho estou fazendo coisas que preciso fazer para a minha viagem. Ainda não comecei a chorar porque vou ficar dois dias sem dormir—ida e volta, mais toda a neuras de ficar numa cama estranha, num banheiro estranho, sem minhas coisas, minha rotina, meu marido, meus gatos. Mas daqui a pouco vou começar, é inevitável. .
Estava pescando na conversa de dois rapazes numa lingua estranha, que logo deduzi ser russo. Os gajos eram portugueses. Até meus ouvidos andam meio fora de órbita.
O céu fechou, com cara de chuva. Um vento gelado me fez encurtar caminhada que faço toda tarde. A primavera é engraçadinha e gosta de te dar umas rasteiras e te pregar umas peças.
Eu vivo ouvindo que preciso aprender a não me importar, a contar até trinta, a deixar pra lá, e estou finalmente começando a escutar.

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o passado não condena