todos os dias eu assisto ao mesmo filme
*
Passam pela minha frente, saltitantes, triturantes e vascilantes, 7621854 esquilos.
Passam pela minha frente, saltitantes, triturantes e vascilantes, 7621854 esquilos.
Quando coloquei os pés para fora do quarto já estava odiando tudo em mim, o cabelo preso, a echarpe com caracteres indianos, a blusa de gola rolê de listrinhas, a calça de boca larga, o sapato que não tinha nada a ver com a meia. Desci as escadas já pensando—está tudo errado, está horrível, vou me odiar! E me odiei. Estou me odiando. O que faz uma pessoa se vestir toda errada pela manhã e já sair se odiando, passar a manhã se odiando. Foi a pressa, claro. O fato de estar atrasada e não poder voltar e trocar de roupa 678843 vezes antes de sair toda esbaforida, e talvez evitar um malfadado dia odioso sem precisar passar a manhã desejando ir para casa e desfazer esse equivoco visual.
No meu sonho ele era um branquelo decrépito e cínico acompanhado de uma ninfeta, dirigindo um carro importado e usando um celular que parecia uma gadget saída de algum armário empoeirado do museu do Jornada nas Estrelas. Mas mesmo assim foi excitante, pois ele entrou na nossa casa, sentou-se à nossa mesa, viu tevê na sala, tomou um inocente banho coletivo no chuveiro, quase não reclamou e me chamou de darling. Darling!
[guri perguntão]—where are you going?
[eu sem paciência]—to Lisbon.
[guri perguntão]—to Lesbon?
[eu sem paciência]—yes, to the Island of the Lesbos…
Passei rapidamente por um cara que me lembrou um outro cara que eu nem conheço pessoalmente, só vi em foto. Eu estou sempre vendo gente parecida com gente que eu conheço ou só vi em fotos. Também vejo muita gente parecida com atores e atrizes. Outro dia vi um filme com uma atriz que eu achei que parecia com uma pessoa que eu conheço e quando encontrei com ela falei—vai ver o filme tal, que tem uma atriz nele que é a sua cara! Isso já virou um hábito e eu tenho a firme convicção de que o mundo é cheio de pessoas parecidas umas com as outras. Pessoas com as mesmas caras e o mesmo jeito, espalhadas por todos os cantos. O único porém dessa minha mania é quando começo a pensar que há também muitos seres parecidos COMIGO vagando pelo planeta. Tenho até medo de tentar imaginar quem são eles, porque uma visão de criaturas com a minha cara ou jeito, mesmo que seja uma mera suposição, é de arrepiar os cabelos.
O pior tortura que você pode infligir a si mesma é abrir uma revista Glamour na sala de espera do seu médico ginecologista, numa segunda-feira miserável, quando seus olhos estão ardendo e com olheiras por causa da mudança de horário e você está se sentindo uma palhaça de circo vestindo seus tamancos de jardim porque outro sapato qualquer vai machucar seu dedão enfaixado e está frio pra usar sandálias, e você está descabelada e desgostosa, vislumbrando a perspectiva de uma operação, que se concretiza no diagnóstico do médico, que diz sem a menor cerimônia que vai te dar um remédio que vai te causar mil e dois efeitos colaterais barbarizantes. Um conselho portanto, pra quando você estiver com seu sapatão de plástico, ostentando olheiras e cansaço, digerindo o diagnóstico fatalista de um futuro sem o seu útero, com um cabelo despenteado e cara de bunda de segunda-feira, por caridade, faça um favor pra si mesma e NÃO abra aquela perfumada, cheia de mulheres perfeitas, sofisticada, bem resolvida e maldita revista Glamour.
Bombeiros da UC Davis e das cidades de Dixon e Woodland estão há horas fazendo uma espécie de treinamento, aqui ao lado da minha janela. Está difícil de me concentrar no trabalho. Já não basta ser uma segundona, e ainda estou me adaptando ao horário novo, com os olhos ardendo e o dedão enfaixado incomodando, além daquela vontade enorme de não fazer nada, a não ser olhar os bombeiros lá fora, treinando para salvar vidas, quem sabe a minha.