agitos de sábado à noite

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Saindo do banho, fui afastar com o pé direito a balancinha de pesar que achei que estava muito próxima do chuveiro e fiz um corte no dedão. Soltei um xingo alto, pois não doeu nada, somente o meu orgulho, que vive sendo ferido por essa minha incapacidade de me manter inteira, intacta, sem cortes, sem queimaduras, sem cicatrizes. Mas o dedo começou a jorrar sangue. Pingava pingos imensos daquele liquido de cor vermelha, da qual já ando entojada. Coloquei o pé apoiado na privada e enquanto olhava assustada a água ficar negra, gritava pelo meu marido, que estava em casa convalescendo de uma gripe. Quando ele me acudiu e me colocou dentro do chuveiro, para lavar a meleca vermelha, cai desmaiada, enrolada na toalha de banho, completamente despida das minhas virtudes e dignidades. Voltei ao mundo dos seres conscientes com a sensação de uma toalha molhada em água gelada refrescando a minha testa e o som da voz dele falando comigo. Fiquei um bom tempo deitada lá, no chão de ladrilhos frios e molhados. Ele limpou o dedão com algodão e água oxigenada e disse—é um corte de uns 5 milimetros, talvez precise de uns dois pontos. Não quero ir ao hospital, retruquei. E não fui. Pleno sábado à noite, filme na tevê, gato sassaricando animado, eu com o dedão coberto por um curativão e meia, me sentindo uma completa parva.

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a mulher que se ocupa na cozinha

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Acordei de madrugada abismada, pois me pareceu que eu estava até então sonhando com comida, escrevendo sobre comida, preparando comida. Senti que estou um pouco bitolada, porque sonho é um território complicado. Pensei ali no meio da noite que era melhor parar com aquilo, que não dava pra continuar, que estava obscurecida na obsessão. Talvez por ter me surpreendido assim totalmente dominada, acabei esquecendo tudo. Esqueci até o sonho que não era pra esquecer, porque era uma história mais do que interessante, instigante e estimulante. Apesar de não ter nada a ver com comida.

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de chapéu

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gabe_bogart.jpg
meu filho foi esquiar–de chapéu.
essa foto é de dez anos atrás, mas o chapéu é bem parecido.

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the trouble with me

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O problema comigo é que quando eu pego entojo, eu pego entojo e não tem volta, não tem jeito. Quando eu pego entojo, tá feito, tá decidido. E quando eu pego entojo de alguma coisa ou de alguma pessoa, eu simplesmente não posso nem mais ver o objeto ou a pessoa na minha frente. Pior, eu não consigo nem pensar, nem mencionar o nome da coisa ou do coiso. Não tem remédio e a única reação que eu consigo ter é de repulsa. Como um disco quebrado, minha mente teimosa não desiste de soletrar com grande ênfase—i don’t like you! É esse o problema comigo, que realmente não tem jeito e que é assim mesmo.

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abracadabra!

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Minha vida deve estar numa fase completamente enfadonha, pois até a minha natural elocução tirou uma folga, escafedeu-se. Mas não é porque nada acontece. Muita coisa acontece, claro. Por exemplo, hoje eu caminhei invés de pedalar a bicicleta, porque chovia muito. Comi pizzelles e bebi suco de cenoura. Chorei mais lágrimas por causa dos animais maltratados. Escrevi e-mails. Amarrei um lenço no pescoço, como a enfermeira Helen Hayes faz em A Farewell to Arms. Marquei hora no médico. Pensei em muitas pessoas. Li algumas notícias. Já decidi o jantar. Se espremer, sai assunto. O negócio é que eu não estou com a menor vontade.

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ninguém contava com essa..

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Pelo vidro emoldurado da janela, olho hipnotizada folhas de jornal voarem e revoarem pelo cimento e gramado. Estávamos engrenando para uma semana de primavera ilusória no meio do inverno, quando começou o vento. Por um motivo alheio ao tempo, eu troquei de roupa na hora do almoço. É muito raro eu fazer dessas, mas quando faço tenho sempre uma desculpa preparada, caso alguém se espante—uai, cê não tava com um casaco de veludinho florido hoje pela manhã? Felizmente nunca tenho que usar minhas histórias esfarrapadas, pois ninguém realmente comenta. E eu voltei mais agasalhada, pois a ventania já tinha começado. Vim pedalando minha bicicleta velha com tal esforço que me fez sentir os músculos do estômago, que eu às vezes acho que não tenho mais. Na caminhada da tarde, lembrei quando eu e o Gabriel lutamos contra o vento numa avenidona deserta daquela cidade que fica na planície gelada. Só ai entendemos por que não víamos ninguém caminhando pelas ruas. Me senti assim caminhando hoje pelo campus, contra o vento que me impunha fazer força e me esticava a cara, ou contra o vento que me empurrava como se estivesse aflito que eu fosse chegar atrasada. Me deu medo. Galhos de árvores ancestrais quebram, alguns já quebraram, mas felizmente nenhum despencou sobre a minha cabeça.

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o passado não condena