Eles estão chegando!
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Amanhã se inicia o ano letivo aqui no campus Davis da Universidade da Califórnia. Depois de um pacato e calmo verão, já estou notando a movimentação geral. Sem falar que a universidade recebeu um recorde de inscritos, o maior número de freshmen de toda a sua história. Pudera, relembrando os quinhentos mil tours que eu vi passar e repassar pela minha janela, com famílias inteiras visitando a escola e shopping around por uma boa educação para seus recém formados pimpolhos colegianos. O resultado é toda essa gente chegando e tentando se instalar na cidade. Está muito engraçado ver os novatos circulando pelo campus, com aquela cara de perdido barata-tonta, todos segurando um mapinha nas mãos e com cara de onde estou? O tráfego de bicicletas já aumentou consideravelmente, as fraternities foram pintadas e reformadas para receber seus integrantes, e garotas de sororities, todas com o mesmo visual, ou camisetas coloridas com as letras gregas da sua denominação, caminham em grupos pra lá e pra cá. Os restaurantes estão lotados, as lojas também, acabou o nosso sossego e a vida pacata de cidade pequena. A partir de amanhã muito cuidado, para não ser engolido, pisoteado, arrastado, soterrado, arrebatado pela horda de estudantes entrando e saindo das classes.
Bo Diddley fez Larry Vanderhoef dançar
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Primeiro evento da temporada de outono do Mondavi Center, e não poderia ser melhor. Um show de Blues. Ou melhor, três shows em um. O old timer Bo Diddley tocou na segunda parte do show. Antes, tivemos algumas baladas de Ruthie Foster, uma réplica da Tracy Chapman. Depois o Blues transvestido de Rock ‘n’ Roll do Alvin Youngblood Hart, quando foi quase impossível segurar as pernas, que praticamente dançavam sozinhas. E então chegou Bo Diddley, meio curvadinho, com sua guitarra vermelha retangular, falou e cantou sobre mulheres a beira de um ataque de nervos e vingativas, empunhando navalhas, ladrões de galinhas, bebuns, vagabundos e toda a flora e fauna do Blues. Fez todo mundo repetir refrões desconexos, bater palmas e no final levantou o teatro com mais de mil e quinhentas pessoas e fez todo mundo dançar. Durante esse momento de êxtase e felicidade, olhamos para um dos camarotes do Grand Tier e vimos o chancellor da Universidade da Califórnia em Davis batendo palmas e dançando. Façanha atribuída ao poderoso Bo Diddley.
vento zangado desmancha os cabelos da moça do lado
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Acordei às cinco da manhã com um barulhão de ventania e um cheiro fortíssimo de mato e madeira queimada que entrava pelas janelas abertas do quarto. Levantei para checar se não era a minha casa de hóspedes pegando fogo. Ouvi muitas sirenes de bombeiros, o ar estava pesado e estranho. Com aquele vento, uma faísca com certeza virava um fogaréu em segundos. Não sei o que nem onde estava queimando, mas que estava queimando, estava. A força do vento me fez repensar o meu meio de transporte diário – como que eu vou pedalar minha bike nesse ventaréu? Tomei coragem, fui. Pelas ruas, toneladas de folhas, flores, galhos, galhinhos, galhões de árvores forrando as ruas. No campus pedalei amedrontada, olhando com cuidado para aquelas árvores ancestrais. Algumas já tinham perdido pedaços. Cheguei sã e salva. Nenhum objeto caiu na minha cabeça. Por hora.
não tenho tempo assunto vontade idéias
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O problema foi eu ter achado um caminho mais interessante. Claro que eu poderia continuar escrevendo sobre o nada, como sempre fiz. Mas quem quer escrever sobre nada, quando se pode escrever sobre algo. Apaixonante. Logo agora, hein? Estou numa segunda-feira de ressaca emocional. Claro, quem gosta de despedidas? Minha reacão é ficar cansada, cansada, cansada. Últimos dias de verão. Eu já vou desanimando de nadar, as noites ficam frias, o dia amanhece mais tarde, trazemos folhas secas coladas nas solas dos nossos sapatos, em alguns dias as aulas começam, o campus vai ficar um formigueiro de pessoas e bicicletas. Meus pequenos projetos criativos vão ficando empoeirados. Estou numa fase específica da minha vida, como tantas já vividas, mais nunca semelhantes.
watching the wheels go round and round
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Dias e dias, nada. Até passou pela minha cabeça que desta vez seria o fim. Não dava pra espremer nem uma gota. Nenhuma! Mas de repente me dá esse negócio estranho, um borfão, uma formigação, uma agitação mental inexplicável e eu sei que vou escrever algo, qualquer coisa, não importa. Sempre saí algo, nem que seja um paragrafo que não acrescenta nem significa nada. Mas essa era a prova que eu precisava para aceitar o fato de que isto aqui ainda dá um caldo.
Nada melhor para iniciar ou engrenar uma conversinha do que um breve comentário sobre o tempo. Pois é, tá calor, né? Mas vai esfriar. Sim, é verdade! Hoje trinta e sete, daqui a dois dias, vinte e um. Vinte e um! Espero que meu irmão tenha trazido um casaco. E há fumaça no ar, eu consigo sentir o cheiro da madeira queimada. Onde há fumaça, há fogo. Alguma floresta está queimando.
Uma pessoa do sexo masculino me disse ontem – homem nenhum vai reparar na mancha roxa na sua perna, nem se a sua perna fosse de pau, eles não reparariam. Eu dúvido disso imensamente.
Eu não sabia que coiotes eram uma peste. Mas infelizmente parece que são, pois comem as galinhas e os gatos.
Tudo está tão silencioso, ouço até os grilos. A vida voltou a ser zen.