abri o bico

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O negócio é bem claro—se eu não ligo pra ninguém, ninguém liga pra mim. Fiquei tão longe que parece que desapareci.
Com todos esses falatórios de crise, cortes, redução de salários e de horas, é fácil tremer na base. Meu grupo de trabalho é relativamente pequeno. Tem o pessoal da web que consta de doze pessoas, incluída eu, e o pessoal das publicações, onde deve ter mais uns doze, além dos acadêmicos, que devem ser mais uns dez. Parece uma família. E o pessoal ganha broches e medalhas por anos de dedicação. Eu poderia ficar trabalhando neste lugar para sempre, ficar uma velhota pedalando a bike, reclamando do calor, fazendo e rindo de piadinhas de geeks. Mas não tenho uma bola de cristal, então só divago sobre a insustentável leveza do não saber.
Finalmente a tal obrazinha que planejei fazer no quintal por mais de dois anos ficou pronta. Não ficou exatamente como eu queria, mas carrega mil possibilidades. Só que agora quem cansou de fazer planos fui eu.

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azul

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mais um dia quatro de julho

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Eu já entendi que meu carma, minha sina aqui neste planeta é aprender a desapegar. Posso até desapegar de várias coisas materiais, mas nunca vou desapegar de certas memórias. Como a de um certo quatro de julho de um ano que não lembro mais, quando ouvi o barulho dos fogos de artifício às dez da noite e saí sozinha no quintal pra ver as luzes que pipocavam no horizonte. Pisei na grama fria, sentindo o frescor da noite depois de um dia quente, a tal brisa do Delta tão esperada, e tentava ver os fogos quando virei e vi a minha casa através das janelas, as luzes acesas lá dentro, a escuridão lá fora ajudando a dar mais destaque para a sala, a cozinha, o quarto lá em cima, o banheiro. Nunca vou esquecer da alegria que senti olhando a minha casa de fora para dentro. Posso com certeza desapegar da casa, mas a lembrança desse momento de felicidade olhando para ela numa noite de quatro de julho vou carregar para sempre comigo.

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modo de fazer

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Anos atrás, quando eu passei por uma febre de tricotagem, comecei um projeto de fazer quadrados coloridos pra mandar pra um lugar que esqueci. Era para virar uma manta eu acho, mas acabou virando um projeto abandonado, que se dissipou nas brumas da vida corrida e mundana.
Eu não tricoto mais porque agora eu cozinho obcecadamente. E o meu cozinhar ficou amplo e envolve ler livros, procurar receitas e idéias, além de preparar as comidas [e limpar—argh!], fotografar, editar, escrever a receita, tralálá.
Mas eu realmente não sinto falta de tricotar, porque nunca fui boa nisso, como nunca fui boa nas costuras. Costurei por muitos anos por falta de opção. As lojas não vendiam as roupas que eu queria vestir, no meu tamanho e do meu jeito. Então fui aos panos e às agulhas. Era também por economia, pois naquela época era mais barato comprar um paninho e fazer bonito. Hoje, com essa invasão de made in sweatshops, já não acho costurar nenhuma vantagem econômica.
Também lembro da onda de fazer bijoux com miçangas, que foi mais um exercicio de paciência, de ficar quieta, de atenção, além do da criatividade. Eu preciso ter um canal pra minha criatividade e então invento modas, mesmo não tendo nenhum talento. Abandonei as miçangas, as linhas, os panos, as lãs e as agulhas. Agora minha atenção está nos rangos, nos pratos, nos talheres e copos. Até quando? Não sei, veremos.

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40ºC / 105ºF

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Estou trancada em casa, com as janelas e persianas fechadas, a/c central ligado porque o calorão começou. Já não me importo mais com isso, porque há coisas muito piores neste mundo. O calor poderia ser úmido e chamar insetos. O que não acontece. Nos orgulhamos e nos gabamos de ser apenas um monte de uvas passas cantarolantes e felizes.
Finalmente, depois de dois anos planejando e repensando estou conseguindo por em prática uma reformazinha que queria fazer no quintal. Tudo pra mim é assim, um custo. Mas justo hoje, nesse calorão dos infernios, o moço tá lá fora assentando tijolinhos. Fui dizer pra ele peloamorededeus beber bastante água. Mas não posso abrigar ninguém a não trabalhar.
Nos primórdios deste blog eu escrevia sobre uma gata, que virou gato numa história notável e mirabolante. Tantos anos se passaram, nem eu me dei conta de quantos e hoje já tenho que enfrentar o mais difícil, que é observar o envelhecimento desse animal.
Deu pra perceber que eu só vim aqui pra encher linguiça? Pois assunto não há. Tudo ficou tão absurdamente particular. Mas eu hei de recobrar, ou redescobrir, uma maneira legal de continuar registrando dias, semanas, meses e anos, sem comprometer ou exaltar a malta.

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cor-de-rosa & fumegante

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Faz tempo que estou pensando numa coisa e hoje fui checar alguns websites listando cafés em Saskatoon, Saskatchewan. Num deles, cliquei num mapa e quando vi os nomes das ruas e dos parques da cidade onde morei por tantos anos, senti meu coração doer daquele jeito estranho que só as memórias do passado conseguem fazer doer. Isso aconteceu porque lembrei de uma coisa boa dos meus invernos em Saskatchewan. E era obviamente uma bebida: um leite fervendo aromatizado com um xarope de fruta e servido em tigelas brancas de cerâmica. Não me lembro como era chamado, só lembro que entrávamos num café de esquina no final da Broadway Ave e pedíamos o leite com sabor de morango ou framboesa, que vinha fumegando dentro da tigela e bebíamos segurando com as duas mãos. Era para aqueles dias frios, pra descongelar os ossos. Minha lembrança mais querida é do dia que fui lá com a minha irmã. Deusdocéu, ela sofreu naquelas cinco semanas de invernão que passou lá com a gente! Quando eu contava do frio de Saskatchewan, parecia tudo uma piada. Mas minha irmã sentiu na pele que nada daquilo era brincadeira. Um dia fomos fazer não-sei-o-que na Broadway e estacionamos o carro na rua. Era o tempo de atravessar a rua ou andar um mísero quarteirão e já estávamos com as pestanas cheias de gelo. Os olhos eram a única parte do corpo que ficava descoberta. Tínhamos que enxergar e iria ser o cúmulo da ridiculice, além de toda a fantasia de esquimó, ainda ter que usar goggles. Nesse dia entramos no tal café—que não lembro o nome e pelo jeito não existe mais – completamente transtornadas, com as pestanas cheias de gelo, e pedimos duas tigelas de leite com sabor de framboesa. Bebemos sentadas ainda de casacos, cachecol, touca, com as bochechas vermelhas, as pestanas molhadas. O leite fervendo foi esquentando o nosso corpo e a nossa alma. Fomos ficando mais relaxadas, menos transtornadas, fomos tirando os mil traquelaques invernais, tiramos o casaco e ficamos conversando por um tempao lá dentro do café aconchegante e cheio de gente tomando leite, chá, café, lendo livros ou jornais ou conversando, como nós.

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o passado não condena