Aquele canto ali

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Tem um canto do meu quintal que eu sonho em transformar no melhor e mais aconchegante lugar para sentar e ler um livro, beber um chá ou uma limonada. Ele fica exatamente ao lado da cerca que divide a minha casa com a dos meus vizinhos com duas crianças, um cachorro e um gato. Ali também fica uma árvore ancestral, que não pôde ser derrubada quando construiram as casas, então ela ficou, com uma cerca enroscada em volta. Uma excelente fonte de sombra, embora ela seja daquelas árvores imensas que perdem TODAS as pequenas folhinhas no outono e faz uma sujeirada do outro mundo. Mas tirando isso, ali debaixo da árvore e acompanhando a cerca está o melhor lugar do quintal. O único problema é que agora aquela área está um lixo—literalmente, com tijolos de concreto empilhados, abandonados pelo outro dono da casa, várias latas de lixo que a prefeitura não aceita mais, capa da churrasqueira, outras duas churrasqueiras pernetas resgatadas de não sei onde, mais uma pilha de entulho verde, que eu acumulo das podas e limpezas de mato e que precisam ser colocados na sarjeta toda quinta-feira, mas nunca são, então ficam lá, uma pilha crescente e apodrescente. Além do fato que a árvore impede o crescimento de grama, e eu queria estender o caminho de tijolinhos até lá. E podar o matagal. Tudo isso, apenas no meu pensamento, sem botar nada na prática, sem o apoio do cara-metade, sem mexer uma palha. Fico olhando fotos de quintais lindos para serem aproveitados durante o verão nas revistas. E enquanto isso tem lá o meu cantinho, praticamente jogado às moscas. Ou melhor, deixado para o filhote de coelho e o esquilo que agora moram no meu quintal.

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A Rosa Fernanda

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Na esfera dos falantes da língua portuguesa minha sina é ficar respondendo——não, infelizmente não sou parente do escritor. E no meio dos faladores de inglês, meu destino é explicar o tempo todo que Rosa é o meu sobrenome. E que meu nome é Fernanda——Éf Ih Are En Ei En Di Ei.

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palavras para ocupar espaço

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Doze graus celsius, nublado com possíbilidade de chuva. Acordei muito cedo, com dor de cabeça, de um sonho onde todas as roupas que precisavam ir pra mala estavam ainda sujas em sacos plásticos.
Adoro as manhãs de sábado, quando posso ficar sentada por horas e horas, sozinha, na cozinha, escrevendo, lendo, planejando o dia. Essa é a melhor parte de ter uma rotina severa de um emprego 8 to 5. Chega final de semana, é uma delícia!
Mas este promete ser frio e molhado. Como se o final de semana passado não tivesse existido, com um bafão absurdo proporcionado por temperaturas de quarenta graus celsius. Algo está muito errado!
O gato mia e eu não sei o que é. Ele deve estar querendo água fresca, na pia. Tem que ser na pia. Esses bichos são exigentes.
Café com leite, pizzelles de anis, suco de laranja com oitocentas miligramas de ibuprofen. Vamos lá cabeção, fica bom logo, pra eu poder aproveitar meu precioso sábado!

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aqui fala-se inglês

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Caio por acaso no website de alguém e pela quantidade de frases em inglês misturadas ao português que leio ali, deduzo que o escrevinhante seja um brasileiro imigrante num país de língua inglesa. Que nada. O tal reside numa cidadezinha qualquer no interior de algum estado brasileiro. No twitter observo o mesmo fenôneno. Pessoas moradoras de terras tupiniquins escrevendo como se estivessem num gueto em L.A. ou no Bronx. O Brasil se anglizou assim sem mais nem menos ou é tudo culpa dos canais a cabo, das escolinhas de inglês e da internet?

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short stories

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Era uma vez um rapaz inteligente, atlético, charmoso e esforçado, que tinha sardas e cabelo ruivo. Ele nadava, jogava futebol, basquete e vôlei, tirava notas altas em matemática e nunca repetiu de ano. Consertava o ferro elétrico da mãe, era gentil com as garotas e tinha um apelido bonitinho dado a ele pela turma. Fez vestibular e foi estudar engenharia agrícola, usava botina, calça jeans com camiseta e mantinha o cabelo comprido. Era exímio no jogo do truco, sabia fazer vinho quente e dançar forró.
Num belo dia o rapaz ruivo foi a uma festa e conheceu a menina bem magrela de cabelo bem curto e vestido bem longo. Ela não bebeu cerveja, mas falou pelos cotovelos. Ela era alta e tinha um jeitão desengonçado. O rapaz ficou a festa toda conversando com ela, que disse que fazia terapia, comia macrô e estudava psicologia. Ela não fazia parte da turma e contou um monte de histórias engraçadas e interessantes, que ele escutou feliz. Daquele dia em diante tudo mudou. Ele agora tinha uma namorada.
Os namorados namoraram rapidamente, casaram-se, tiveram um filhinho quase ruivinho que adorava desenhar e viveram felizes. Até agora para sempre.

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numa piscada

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Repensando agora, parece que tudo aconteceu muito rápido, como num filme acelerado. Num minuto se está num estresse, arrumando mala, pensando no enclausuramento do avião e na expectativa de deixar o certo pelo desconhecido. Noutro minuto se está num outro continente, surpresa com as novidades e diferenças, sem conseguir dormir, caminhando cansada, comendo cansada, bebendo cansada e muito alegre. Muito papo, muita foto, muitos abraços, lugares, comidas, felicidade. Laranjeiras e limoeiros carregados, papoulas amarelas e vermelhas, oliveiras, lavandas, videiras, hortinhas nos quintais das casas brancas pelas estradinhas, estreitas ruas medievais, castelos, muralhas, cachorros e gatos, ovelhas e vacas, café com leite e pão com manteiga, queijo e presunto, varandas, azulejos, vasos de flores, roupas secando nas janelas, estádios de futebol, vinho verde, vinho branco, vinho tinto. De repente pisca-se e tudo acabou. De volta à rotina, lancheira com banana, iogurte e biscoito de arroz, bicicleta, how was your trip, lista de afazeres, centenas de e-mails não lidos, sol, flores, cerejas, tomates, estudantes, cheiro de jasmim. Welcome home—ouvi dos oficiais da alfândega no aeroporto. Yes, indeed, welcome home!

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o passado não condena