muito bom mesmo assim

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No meu sonho ele era um branquelo decrépito e cínico acompanhado de uma ninfeta, dirigindo um carro importado e usando um celular que parecia uma gadget saída de algum armário empoeirado do museu do Jornada nas Estrelas. Mas mesmo assim foi excitante, pois ele entrou na nossa casa, sentou-se à nossa mesa, viu tevê na sala, tomou um inocente banho coletivo no chuveiro, quase não reclamou e me chamou de darling. Darling!

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na agência de viagem

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[guri perguntão]—where are you going?
[eu sem paciência]—to Lisbon.
[guri perguntão]—to Lesbon?
[eu sem paciência]—yes, to the Island of the Lesbos…

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espelho meu, espelho nosso

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Passei rapidamente por um cara que me lembrou um outro cara que eu nem conheço pessoalmente, só vi em foto. Eu estou sempre vendo gente parecida com gente que eu conheço ou só vi em fotos. Também vejo muita gente parecida com atores e atrizes. Outro dia vi um filme com uma atriz que eu achei que parecia com uma pessoa que eu conheço e quando encontrei com ela falei—vai ver o filme tal, que tem uma atriz nele que é a sua cara! Isso já virou um hábito e eu tenho a firme convicção de que o mundo é cheio de pessoas parecidas umas com as outras. Pessoas com as mesmas caras e o mesmo jeito, espalhadas por todos os cantos. O único porém dessa minha mania é quando começo a pensar que há também muitos seres parecidos COMIGO vagando pelo planeta. Tenho até medo de tentar imaginar quem são eles, porque uma visão de criaturas com a minha cara ou jeito, mesmo que seja uma mera suposição, é de arrepiar os cabelos.

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um glamour desnecessário

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O pior tortura que você pode infligir a si mesma é abrir uma revista Glamour na sala de espera do seu médico ginecologista, numa segunda-feira miserável, quando seus olhos estão ardendo e com olheiras por causa da mudança de horário e você está se sentindo uma palhaça de circo vestindo seus tamancos de jardim porque outro sapato qualquer vai machucar seu dedão enfaixado e está frio pra usar sandálias, e você está descabelada e desgostosa, vislumbrando a perspectiva de uma operação, que se concretiza no diagnóstico do médico, que diz sem a menor cerimônia que vai te dar um remédio que vai te causar mil e dois efeitos colaterais barbarizantes. Um conselho portanto, pra quando você estiver com seu sapatão de plástico, ostentando olheiras e cansaço, digerindo o diagnóstico fatalista de um futuro sem o seu útero, com um cabelo despenteado e cara de bunda de segunda-feira, por caridade, faça um favor pra si mesma e NÃO abra aquela perfumada, cheia de mulheres perfeitas, sofisticada, bem resolvida e maldita revista Glamour.

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para a nossa segurança

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Bombeiros da UC Davis e das cidades de Dixon e Woodland estão há horas fazendo uma espécie de treinamento, aqui ao lado da minha janela. Está difícil de me concentrar no trabalho. Já não basta ser uma segundona, e ainda estou me adaptando ao horário novo, com os olhos ardendo e o dedão enfaixado incomodando, além daquela vontade enorme de não fazer nada, a não ser olhar os bombeiros lá fora, treinando para salvar vidas, quem sabe a minha.

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agitos de sábado à noite

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Saindo do banho, fui afastar com o pé direito a balancinha de pesar que achei que estava muito próxima do chuveiro e fiz um corte no dedão. Soltei um xingo alto, pois não doeu nada, somente o meu orgulho, que vive sendo ferido por essa minha incapacidade de me manter inteira, intacta, sem cortes, sem queimaduras, sem cicatrizes. Mas o dedo começou a jorrar sangue. Pingava pingos imensos daquele liquido de cor vermelha, da qual já ando entojada. Coloquei o pé apoiado na privada e enquanto olhava assustada a água ficar negra, gritava pelo meu marido, que estava em casa convalescendo de uma gripe. Quando ele me acudiu e me colocou dentro do chuveiro, para lavar a meleca vermelha, cai desmaiada, enrolada na toalha de banho, completamente despida das minhas virtudes e dignidades. Voltei ao mundo dos seres conscientes com a sensação de uma toalha molhada em água gelada refrescando a minha testa e o som da voz dele falando comigo. Fiquei um bom tempo deitada lá, no chão de ladrilhos frios e molhados. Ele limpou o dedão com algodão e água oxigenada e disse—é um corte de uns 5 milimetros, talvez precise de uns dois pontos. Não quero ir ao hospital, retruquei. E não fui. Pleno sábado à noite, filme na tevê, gato sassaricando animado, eu com o dedão coberto por um curativão e meia, me sentindo uma completa parva.

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a mulher que se ocupa na cozinha

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Acordei de madrugada abismada, pois me pareceu que eu estava até então sonhando com comida, escrevendo sobre comida, preparando comida. Senti que estou um pouco bitolada, porque sonho é um território complicado. Pensei ali no meio da noite que era melhor parar com aquilo, que não dava pra continuar, que estava obscurecida na obsessão. Talvez por ter me surpreendido assim totalmente dominada, acabei esquecendo tudo. Esqueci até o sonho que não era pra esquecer, porque era uma história mais do que interessante, instigante e estimulante. Apesar de não ter nada a ver com comida.

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o passado não condena